Amadas coisinhas velhas, quando terei coragem de me livrar de vocês? Papéis e tralhas antigas estão na primeira linha, de qualquer sistema gerencial de coisas inúteis e descartáveis. Cultivamos o prazer de amontoar inutilidades que deveriam ser jogadas fora e jogamos fora preciosidades que deveriam ser guardadas. Sem perceber muita gente cultua e sobreestima velharias e quinquilharias que não servem para nada, a não ser para atravancar gavetas, mesas, caixas e prateleiras. Às vezes, locais ideais para construção de ninhos de ratos, formigas e baratas.
Pretendo nesses próximos dias reexaminar minhas “coisas inúteis” e fazer uma limpeza daquelas nas gavetas, estantes, debaixo das camas e sobre o guarda-roupa, para decidir o que serve e o que não convém guardar mais. Muitas coisinhas não terão méritos suficientes para continuar escondidas, azucrinando minha paciência. Nessa limpeza devo encontrar aquele negócio que procuro há dois anos.
Jogar coisas fora exige coragem, determinação e preparo psicológico. Gerir trecos antigos é, na realidade, tomar decisões, conviver com o passado e ser um pouco idiota. Faz vinte anos que venho procrastinando essa tarefa inadiável. Enquanto o tempo passa velharias e sucatas inúteis continuam exigindo mais espaços.
Tentei várias vezes inventariar papéis e antiguidades para dar ordem ao caos, sem grande sucesso. Quase chego às lágrimas quando abro envelopes antigos com cartas cheias de ternura, suspiros e beijos. Quando me sento para enxotar o passado, envolvo-me com amores que o tempo levou; com sofrimentos, tristezas particulares e triunfos generosos. Receitas médicas, resultados de exames desde minha adolescência, preciosos catálogos e manuais de instruções de todo tipo de eletrodomésticos, alguns jornais do tempo do onça, ressuscitam lá do fundo de alguma caixa e começo a relê-los com interesse crescente. Abstraído nem percebo o tempo passar. Então, deixo tudo para outro dia e fica a frustração de um amontoado de tralhas, mais embaraçado ainda; para ser resolvido quando Deus der bom tempo. Surpreendo-me ao descobrir que nunca apreciei recortes de jornais e de revistas que guardei com carinho para lê-los quando sobrasse tempo. Jamais sobrou tempo! Dobro tudo novamente e recoloco num envelope com data e o rótulo “para meus filhos”! Quem sabe, eles seguirão meu exemplo, adiando sempre a leitura desses papéis raros, até que se tornem inutilidades raras!
Nunca devemos subestimar o valor de coisas antigas, guardadas em baús ou caixas desmanteladas e cobertas de poeira. Antes de tudo, quinquilharias são precioso acervo memorial de acontecimentos que marcaram nossa existência. Reencontrá-los é como nascer de novo; mesmo com o coração aturdido e os olhos cheios de lágrimas. Impus-me um prazo para reorganizar meus trecos onde guardo preciosas relíquias empilhadas em estantes decrépitas. O primeiro passo é conscientizar-me que devo fazer isto. O segundo é fazer.
Acumulei coisas interessantes. Outras não. Como, cartas familiares dos bons tempos, pedaços de rosários, um certificado do meu batismo carcomido pelas traças, duas lentes para corrigir miopia, um exame laringológico de 1942. Guardo ainda pedaços de bonecos de celulóide, vários livrinhos e estampas de santos com orações variadas, manuais de instruções diversas, uma fivela com a cara de Buffalo Bill, amostras de areias monazíticas da praia de Guarapari; dois relógios imprestáveis, metade de uma nota promissória liquidada, um cheque que nunca foi sacado, muitos cartões postais, saudosos cartões de Natal e meio mundo de cartões de visitas. O bom guardador de coisas velhas não pode deixar de guardar revistas, mapas, livros, discos e jornais antigos. Destes tenho um monte. Agora, juntar-se-ão a estes, disquetes, CDs, certificados de garantia de computadores, de impressoras e outras trapizongas modernas.
Difícil é fazer a escolha entre o que vai pro lixo e o que não vai! Mesmo diante de coisinhas tão insignificantes, como são as velharias, pergunto-me: “Como é que uma pessoa escolhe?” Muitas destas reminiscências nasceram, desempenharam um determinado papel e depois foram relegadas ao esquecimento. Por exemplo: Ainda guardo um atestado de Folha Corrida da Polícia, que atestou minha idoneidade e me permitiu ocupar o primeiro emprego. Bem como, todas as cartas de recomendação moral dos empregos por onde passei. Revendo as lembranças que conservo, notei que parte da história do rapaz que fui está no meio daquele torvelinho desordenado, querido e ao mesmo tempo inútil.
Triste mesmo é dar fim aos livros, revistas e discos contendo saudosas canções. Quando chegar o dia de me desfazer desse acervo quase místico, farei um pacote e...pluft, largarei tudo no caminhão coletor de lixo, e sairei correndo no sentido contrário para não testemunhar tal desventura. Outras coisas que o bom colecionar de velharias não pode deixar de guardar numa caixa caindo aos pedaços, são rolhas, fita isolante, pedaços de canos, barrotes de madeira, alicate, tubos de cola vencidos, martelo, serrote, porcas, arruelas, pregos e parafusos enferrujados de todos os tipos, arame, fios para emergência, tomadas e as preciosas chaves de fenda. Esta parte das velharias pertence aos colecionadores artesãos, que nunca abrem mão de um parafusinho sequer. As mulheres também conservam uma parafernália de coisas velhas, que marcam suas vidas.
Estou fazendo o possível para evitar o culto exagerado às “necessidades supérfluas”. Redigirei um Estatuto, denominado “Porcarias”, cujo principal artigo será este: “Jogar fora o que não serve para nada, após esgotados todos os argumentos sentimentais de que o objeto nunca fará falta”. Este Estatuto será meu escudo contra a idolatria à essa velharia inútil.
Inúmeras vezes queimei as pestanas, tentando selecionar e catalogar todos os negativos de filmes dos últimos quarenta anos. Mas, a coisa está tão enrolada que é melhor rotular o pacote de “PROBLEMA SÉRIO”, esquecendo-o numa caixa com o sub-título: “Algum dia, talvez!”. Por falar em fotografias de família, já distribui centenas de fotos entre meus filhos. Cada um teve o livre arbítrio de escolher sua herança fotográfica. Mesmo porque à medida que envelhecemos dá enorme tristeza ver fotografias dos velhos tempos.
Estou seriamente decidido a não permitir que entre um treco novo lá em casa, sem que um treco velho voe pela janela. Considero valiosa essa permuta do novo pelo velho. Só não garanto se vai dar certo! No Estatuto colocarei uma cláusula, proibindo-me de entrar em livrarias, sebos e lojas de discos, com multa prevista de meio salário mínimo para cada infração; para doação aos pobres.
Pretendo livrar-me desse acervo de inutilidades, antes que um acesso de raiva queime meus neurônios. Pensando bem, as pessoas civilizadas e organizadas dispensam tudo que possa entulhar suas vidas e lares. Pelo mundo afora há os que idolatram quinquilharias, disfarçando um desejo de “perpetuar seu passado”. Na verdade muitas antiguidades acabam descrevendo suas próprias histórias, com os relacionamentos familiares e da conjuntura social da época. Há quem guarde com estima uma escrivaninha Vitoriana, um lampião à gás, uma cabeça embalsamada de Alce, uma clarineta do século XVIII, um raro exemplar de violino Stradivarius, um delicado vaso de porcelana chinesa, ou um pedaço de charuto de algum estadista famoso. O escritor W. Somerset Maugham onde se encontrasse, mesmo nos hotéis mais luxuosos, colocava uma xícara velha e rachada numa cômoda. Perguntado sobre essa singularidade bizarra, ele respondeu: “Serve para lembrar-me que, no fim de contas, as melhores coisas da vida são as mais simples. Esta xícara me faz voltar à realidade, quando estou ficando vaidoso demais!”.
De certo modo as coisas velhas ganham vida, à medida que o tempo passa. Muitas velharias aparentemente obsoletas terminam virando lenda, como um vestido de noiva, a coroa de um Rei famoso, um livro raro, o manuscrito de algum romancista, as chuteiras de um goleador. São velharias inestimáveis e sem cotação de preço. Guardarei para sempre a primeira página de um jornal publicada no dia em que nasci. Entretanto, estou plenamente consciente de que quando morrer, minhas brilhantes quinquilharias, virarão um monte de cinzas.
Nessa história de acabar com coisas obsoletas, há um evidente contraste. Às vezes guardamos um objeto, uma carta, um documento anos a fio. Jogamo-lo fora e acontece o inusitado: precisamos do dito cujo no dia seguinte, sem meios de recuperá-lo. Cada colecionador de velharias conta transtornos desse tipo. Dentro em breve farei uma astuciosa e honesta auditoria nos meus trecos velhos, enquadrando tudo no Estatuto que elaborei. Separado o joio do trigo, farei um grande pacote reforçado e esperarei o caminhão do lixo passar. Num gesto varonil e resoluto...vupt, jogarei o pacote dentro da caçamba, com firme e irrevogável tchau! Depois, gritarei no meio da rua: “Consegui...consegui!”.