Mentira tem pernas curtas



Todo mundo mente para evitar sofrimento. Mas a mentira acaba gerando um desgaste enorme e, no fim das contas, vale a pena ser evitada
por Eugênio Mussak

Dizemos que a mentira tem pernas curtas porque sabemos que ela não costuma ir muito longe. Cedo ou tarde, ela cambaleia, tropeça e acaba sendo alcançada pela verdade. Isso acontece por, pelo menos, dois motivos: primeiro, porque quando mentimos fazemos mais esforço do que quando dizemos a verdade, em função do dilema moral envolvido na questão, ainda que inconsciente. Segundo porque, quando precisa ser repetida, a mentira perde força, sendo contaminada por fragmentos da verdade ou por outra mentira, pois sua base não é a realidade, e sim a ficção.
Mentir significa “inventar” uma verdade que não existe, e não “relatar” a verdade como ela é. A mentira começa com a pessoa, a verdade é anterior a ela. Quando mentimos criamos uma realidade que não se baseia em nenhum outro fato, a não ser nossa própria criatividade, o que não é suficiente para sustentar o que foi dito, caso o assunto não se esgote rapidamente. O candidato a emprego que mente sobre sua experiência e qualificações será desmascarado pela inconsistência do currículo ou pela incapacidade de atender às expectativas que criou. E por aí vai. Fatos que demonstram o insustentável peso da mentira podem ser colhidos aos montes na história de vida de quase todas as pessoas – de adolescentes a presidentes da república.
Mas, afinal, por que mentimos, se todos sabemos que existe a chance de sermos desmascarados mais cedo ou mais tarde? Que força é essa que nos impele a não sermos sempre fiéis aos fatos? Há mentiras justificadas ou não? A verdade, doa a quem doer, sempre é a melhor opção?

Por que mentimos?

Essas são questões da ética humana que interessam a várias correntes do pensamento. A psicologia explica a mentira pelo mecanismo de defesa, a sociologia pela busca do poder, a filosofia pela imperfeição humana e a religião pela compulsão ao pecado. As explicações, entretanto, quase nunca justificam a mentira ou desculpam o mentiroso.
As motivações são diversas, o que pode ser percebido até na literatura. Podemos examinar um filme e uma novela que abordam bem essa faceta do ser humano, com suas conseqüências. O filme: O Fabuloso Destino de Amélie Poulin, dirigido por Jean Pierre Jeunet – uma versão moderna de Poliana, a garota que sempre via o lado bom das situações. Em uma das cenas, Amélie conta a Joseph que Georgette está apaixonada por ele e, para Georgette, afirma que Joseph também está interessado nela. Duas mentiras, pois eles não haviam dito nada disso, mas nossa heroína percebeu a possibilidade de aproximar os amigos que sofriam, ambos, do medo da rejeição. A conseqüência foi que essa “mentira amorosa” encorajou o casal a se relacionar, o que acabou interferindo, para melhor, no clima do bar que todos freqüentavam.
A novela: Beto Rockefeller, escrita por Bráulio Pedroso e produzida pela TV Tupi em 1968, marcando o início da moderna teledramaturgia brasileira. O personagem, Beto, interpretado por Luis Gustavo, é um rapaz suburbano de São Paulo, inconformado com sua pobre condição social. Por ser simpático e bem falante, consegue ser aceito por grupos de jovens da elite paulistana, que desconhecem sua origem. Durante toda a trama ele se faz passar por filho de uma família rica e aristocrata. Inventa histórias, mente descaradamente, arma tramas incríveis e, dessa forma, vai se dando bem. Até que, é claro, a casa cai, os amigos descobrem sua verdadeira identidade e o anti-herói sofre as conseqüências de sua impostura.
Quais as semelhanças e as diferenças entre essas duas histórias? A semelhança é que os dois personagens-tema usam mentiras para atingir seus objetivos. A diferença fica por conta da qualidade dos objetivos. Enquanto Amélie inventa lorotas com a intenção de ajudar seus semelhantes, Beto só quer se dar bem. Nos dois casos, ambos foram desmascarados, com a diferença que Amélie foi ainda mais querida por seus amigos, enquanto Beto foi defenestrado por todos.
Além de ser uma obra de ficção, ou seja, uma mentira por si só, o filme de Amélie brinca com falsas afirmações de uma forma doce e benéfica. Ela mente para as pessoas ao seu redor com a intenção de lhes proporcionar coisas boas. O seu objetivo, portanto, é nobre – trata-se de uma forma positiva de encarar a mentira. Isso quer dizer que estamos autorizados a faltar com a verdade, pois ela é relativa? Não, por favor, não me entenda mal. O que é relativo é a percepção que temos dos fatos, e a mentira grande ou pequena, danosa ou inconseqüente, piedosa ou maldosa, sempre será uma mentira e, como tal, poderá ferir alguém.